Reflexão:
Negros
não são descendentes de escravos
Por J.R.Sant´Ana
, Jornalista, pedagogo e pesquisador, se dedica a recuperar histórias cujos
personagens são cidadãos fazedores da história de Rio Claro.
O
objetivo deste texto é desmascarar a secular tradição que insiste em afirmar
que os negros brasileiros e americanos são descendentes de escravos. Tal
costumeira afirmativa não é verdadeira. É apenas um pérfido jogo de palavras
ideológico.
Ela é
mantida apenas pelo interesse político em utilizar os segmentos
afrodescendentes como massa de manobra servil, quer como mão de obra, quer como
contribuintes alienados ou curral eleitoral.
Detalhe
fundamental. Este crime simbólico tem raízes profundas. Sua origem está no medo
que os brancos tiveram dos negros por muito tempo. Isto porque em pontos chaves
do país a população negra chegou a ser maior que a de brancos. A preocupação
com a segurança nacional só foi resolvida com os investimentos oficiais na
imigração branca. Daí, os negros se tornaram minoria. Vestígios do antigo medo,
no entanto, sobrevivem no imaginário.
Vamos aos
fatos relativos ao assunto deste texto. É preciso ser pedagógico para
confrontar toda a manipulação que empesteia livros didáticos, teses acadêmicas
e a mentalidade geral.
Você já
viu algum judeu dizer que, ele judeu, é descendente de escravo? É óbvio que
não. Agora, você já viu algum brasileiro dizer que os negros são descendentes
de escravos? Sim. Todos dizem isso.
Pois bem,
então faça a comparação e se pergunte pelo motivo da diferença. Os judeus foram
utilizados como escravos no Egito por 430 anos. Sem contar outros 70 anos de
confinamento na Babilônia. Só que os judeus se identificam como pessoas
originárias de um povo livre, anterior à escravidão.
Tal
referência foi extraída dos afrodescendentes nas Américas. Por isso, nós
brasileiros, aceitamos com naturalidade a tradição de limitar a identidade dos
negros como descendentes de escravos. Ninguém se preocupa com a evidência,
também óbvia, de que eles eram originalmente livres na África. A preferência é
estigmatizá-los como descendentes de escravos. Este é um reducionismo
ideológico contra o humanismo.
Todo o
pensamento que podemos ter sobre afrodescendentes ficou limitado à fronteira do
navio negreiro para cá. Época da humilhação e da miséria. Ninguém fala do
antes.
Trata-se
de uma imposição cultural para inviabilizar a possibilidade de pensar o
negro original como livre, independente, guerreiro, em estado de natureza,
ou, principalmente, com civilização própria e sustentável.
À cultura
comum tornou-se inviável pensar a civilização de Cartago, com Aníbal, ou
qualquer dinastia egípcia negra. No que devem ser incluídos os guerreiros
muçulmanos do século VII, negros conquistadores.
Daí a
pergunta: dá para perceber nisso a intenção de apagar a ancestralidade
guerreira dos negros? Cartago, muçulmanos, guerreiros? Nem pensar.
Por isso
tudo foi eliminada a possibilidade de compreender a negritude como originária
de pessoas livres que, em determinado momento, foram utilizadas como escravos.
A
escravidão no Brasil durou 300 anos. Tempo bem menor que os 500 anos dos judeus
no Egito. Então, porque os judeus não se dizem descendentes de escravos
enquanto nossa cultura repisa o estigma ao testemunhar que negros americanos
são descendentes de escravos? Para quem entende o termo, isto é pura ideologia,
é mentira em forma de verdade aparente.
A quem se
apressar a refutar a comparação entre uma escravidão e outra, cabe ressaltar
que, apesar da distância no tempo, sabemos muito mais sobre a escravidão dos
judeus do que da escravidão no Brasil. Não obstante a primeira datar de 3500
anos e a nossa de 125 anos.
E coloco
no ar uma suspeita. Há por aí uma movimentação de “levar a cultura negra às
escolas”. Não vi, não sei. Parece algo como um programa pedagógico de alegada
disposição por democracia racial que inclui elementos do assunto em escolas
públicas.
Daí, me
pergunto. O que será que irão fazer com isso? Ainda não sei. Mas suspeito,
reservadamente, que farão o de sempre. Inocular o veneno da tradição na mente
das crianças dizendo que os negros são descendentes de escravos e nelas incutir
o sentimento de inferioridade e ressentimento. O que a máquina do Estado
poderia oferecer às escolas sobre a liberdade original dos povos africanos se
nem os historiadores brasileiros têm informações a respeito? Gostaria muito de
saber que minhas suspeitas são infundadas, mas até prova em contrário as
mantenho. Infelizmente.
Diante de
tais argumentos, considero nossa historiografia tradicional tão canalha quanto
vagabunda. Primeiro, por desprezar o espírito de liberdade que deve nortear o
humanismo. Os historiadores não poderiam compactuar com o objetivo reducionista
de identificar uma etnia por um momento de 300 anos por ela vivido. A história
da negritude atravessa milhares de anos. Porque escolher exatamente o pior para
exibir nas salas de aula como identidade permanente de um povo? Em segundo, é
vagabunda porque a historiografia nativa vive de repetir o que encontrou
pronto, não vai além do que recebe forjado, como a afirmação de que os negros
são descendentes de escravos.
Mas nem
tudo é estupidez. Pela primeira vez em Rio Claro, algo provavelmente incomum em
muitas partes do país, tem-se uma mostra cultural que renega a exploração da
cultura negra como pobreza, miséria e escravidão.
É a
exposição “Ogum”, sobre raízes africanas, aberta no Shopping Center Rio Claro.
Ali se vê material simples, artesanatos, roupas e demais peças, mas suficiente
como mostra da estética africana pré-escravidão. Uma beleza. Já não era sem
tempo. Sinal que se aproxima a hora em que se dará um fim na canalhice de
identificar a alma das pessoas por momentos da história. Os negros, pois, são
descendentes da liberdade.
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