Escola é o espaço onde crianças de religiões afro
mais se sentem discriminadas, afirma pesquisadora.
A escola não é um dado. Ela nem sempre existiu, e tampouco sempre foi do
jeito que conhecemos hoje. Em sua construção e consolidação como instituição
social, ela passou por diversas transformações e foi moldada por determinados
setores. É o que o professor Jurjo Torres chama de currículo oculto da educação.
Por Pedro
Ribeiro Nogueira
Lembrando da imagem do Cavalo de Troia, Torres afirma que existem muitas
aprendizagens não intencionais, ou seja, que não estão no programa do professor
de maneira expressa. “São as consequências das cosmovisões e ideologias nas
quais fomos educados e assumimos como ‘naturais’, ‘óbvias’ e ‘lógicas’.
Uma ideologia, quando se torna hegemônica, se plasma em determinadas
práticas, rotinas, tradições, motivações e interesses que, de uma maneira
consciente e reflexiva, nós não tratamos de trazer à luz, investigar, analisar
e questionar. Esses tipos de tarefas que programamos e que cremos que são
educativas, pois são parte do ‘senso comum’, ‘sempre foram assim’, ‘aprendi
assim’”.
E como isso se dá numa sociedade com passado escravocrata e um presente
que ainda padece de diversas formas de racismo?
Essas e outras perguntas estão presentes na pesquisa de Stela Guedes,
doutora em educação e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da
UERJ (PROPED-UERJ) e autora do livro “Educação nos terreiros – e como a escola
se relaciona com crianças de candomblé”, lançado em 2012.
Ao longo de 20 anos de pesquisa, a professora buscou analisar o
preconceito contra religiões de matriz africana no ambiente escolar e as
dificuldades da implementação da lei 10.639, de 2003, que prevê o ensino de
cultura e história afro-brasileira e africana nas escolas e descobriu que, para
os estudantes de religiões afro que frequentam as instituições de ensino
brasileiras, esse é o espaço onde mais se sentem discriminados.
“Primeiro,
temos de reconhecer que o Brasil é um país racista. Esse é o primeiro passo
para olharmos para os espaços sociais.”Arquivo Pessoal
“Uma vez entrevistei uma professora de Ensino Religioso que afirmava que
a disciplina não era proselitista e não discriminava e que, na mesma resposta,
comemorava o fato de ter tido no ano anterior 8 alunos ogans que se converteram
ao cristianismo (ogan é um cargo masculino cuja responsabilidade são muitas,
entre elas, tocar os atabaques nos rituais). A escola, que é o lugar dos
diferentes entre si por natureza, deveria ser o lugar mais preparado para não
só lidar, mas também para aprender profundamente com essas diferenças.
Infelizmente não é”, afirma Stela.
Para ela, a “escolarização pública em nosso país foi e continua sendo
marcada pelo espírito de catequese” e precisa ser transformada. A pesquisadora,
que ministrará neste mês o curso “A escola e o terreiro: diversidade e
educação antirracista em pauta”, em São Paulo, conversou por e-mail
com o Portal Aprendiz, sobre os resultados de sua pesquisa, o caráter racista da educação
brasileira e os possíveis caminhos para uma educação antirracista e
transformadora. Confira:
Portal Aprendiz: Bom, começaria com o título de seu livro: como a escola
se relaciona com as crianças do Candomblé? Quais foram as principais
descobertas dos seus mais de 20 anos de pesquisa?
Stela Guedes: A escolarização pública em nosso país foi e continua sendo marcada pelo
espírito de catequese. Não é difícil entender o porquê. Em 1549, trazidos pelo
governador geral Tomé de Souza, três jesuítas chegam ao país e, em Salvador,
fundaram o colégio da Companhia de Jesus. Duzentos e dez anos depois, quando os
jesuítas foram expulsos do Brasil, o ensino público passou para as mãos de
outros setores da igreja católica. Quase 500 anos depois e, apesar de, em 1891,
a primeira Constituição republicana ter separado Estado de Igreja e afirmar que
“será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos”, o papel da
escola pública ainda é catequizar e converter. A conversão é um conceito amplo
e não se refere apenas a conversão religiosa. A conversão é uma submissão à
lógica dominante que aí sim diz respeito a uma padronização em função da
religião dominante, aos valores dominantes conservadores sobre família,
sexualidade, aparência, raça, ou seja, aos modos de ser, estar, crer, não crer
e agir no mundo. Dentro dessa lógica a escola não acolhe as diferenças entre
elas, as diferenças religiosas. Em mais de 20 anos de pesquisa todas as
crianças e jovens de candomblé são unânimes quando afirmam que todos os espaços
da sociedade são cruéis, mas nenhum lugar é tão cruel quanto a escola quando se
trata de humilhar e excluir alunos e alunas de candomblé ou umbanda.
Aprendiz: Que tipos de impactos sociais uma educação intolerante e
racista pode trazer?
Stela: Primeiro, temos de reconhecer que o Brasil é um
país racista. Esse é o primeiro passo para olharmos para os espaços sociais e
entendermos que todos eles são espaços racistas. Isso porque o racismo é um
sistema em que um grupo se considera superior e submete de diversas formas um
outro grupo considerado inferior. O mais fundamental é, ainda, entender que
fomos educados em uma escola branca, cristã e racista. Então a pergunta deve
ser “Que tipo de impactos e consequências a nossa sociedade e, portanto, a
nossa educação racista nos trouxe? Que tipo de relações criamos?” A dominação
colonial na África, como bem se refere o pesquisador Kabengele Munanga, com sua
missão “civilizadora”, teve como objetivo reduzir negros e negras ontológica,
epistemológica e teologicamente. Isso fez com que os países colonizadores se
servissem de seus saques econômicos e históricos. Roubaram por séculos a
riqueza material e a história dos povos de África. No nosso caso, negros e
negras escravizados não “contribuíram” com a formação do que se chama “povo
brasileiro”. Foram os negros e negras roubados, aprisionados, desterrados e
escravizados que ergueram esse país. Uma das consequências quando um
grupo de seres humanos passa a se achar superior a outro grupo de seres humanos
é a total subtração da história do grupo considerado inferior. Essa foi uma
consequência drástica na educação brasileira. A história de um continente
inteiro foi subtraída de nossas escolas. Não se trata de ser tolerante. Nenhum
indivíduo ou grupo quer ser tolerado. A tolerância, apesar de ser um conceito
aparentemente interessante, é sempre uma ação que prevê alguma benevolência ou
aceitação daquele ou do grupo considerado como referência nas tensas e
complexas relações de poder. Ou seja, não podendo te eliminar eu te
tolero. Não podendo eliminar este ou aquele grupo eu os tolero e aceito. A
tolerância sempre exige algum grau de assimilação e estabelece limites. Uma vez
ultrapassados os limites do jogo da assimilação, o tolerante deixa de tolerar.
“A escola é
o lugar dos diferentes e, por ser esse lugar, a escola é um lugar tenso.”
Aprendiz: Como a educação poderia se relacionar com os diferentes tipos
de saberes? Você saberia mencionar alguma experiência em que um terreiro e uma
escola se articularam para discutir história e cultura-afro?
Stela: A escola não tem de tolerar pessoas as quais
considera diferente de sua lógica hegemônica. A escola precisa reconhecer que a
vida no planeta é constituída por seres humanos diferentes. A escola é o lugar
dos diferentes e, por ser esse lugar, a escola é um lugar tenso, porque não há
harmonia na diferença e nem pode haver. O ideal é que busquemos a convivência
respeitosa entre pessoas e grupos. E essa convivência respeitosa, essa
experiência intercultural pautada nos direitos humanos não acontece se um dado
conhecimento for erguido ao reino da importância e, portanto, legitimado,
enquanto outros tantos conhecimentos são submetidos ao reino da desimportância
e, portanto, deslegitimados e excluídos das escolas. A escola deve reconhecer o
conflito e apostar nele, para que, a partir das diferenças, todos e todas
possam ser vistos e compreendidos uns pelos outros. Não conheço experiências
como as que você menciona, conheço projetos individuais de alguns professores e
professoras que tentam fazer com que alunos e alunas conheçam terreiros e falem
na escola a partir dessa experiência.
Aprendiz: O que mudou desde a aprovação da lei Lei 10.639?
Stela: A Lei 10.639 foi sancionada em 2003 e diz que nos
estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares,
torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. Todos
os pesquisadores e pesquisadoras que estudam a aplicação da lei descrevem
inúmeras dificuldades. Falta formação para professores e professoras e o
obscurantismo crescente na educação também é um dado que dificulta.
Professores, professoras, pais, alunos e alunas, funcionários obscurantistas
acreditam que qualquer referência à África é um passaporte para o inferno, pois
associam África ao Diabo. Como isso aconteceu? Com a mesma inferiorização dos
povos africanos sobre a qual falávamos há pouco. A lei foi uma conquista
importante, mas temos muito a caminhar e é preciso uma luta cotidiana contra o
racismo, incluindo as faculdades de formação de professores e professoras.
“Os
terreiros de candomblé são espaços de circulação de imensos conhecimentos.”
Aprendiz: Porque as crianças afirmam que a escola é o lugar que mais
discrimina? Como se dá essa discriminação? Como isso afeta a auto-percepção
dessas crianças?
Stela: Por toda essa realidade racista e obscurantista
que estamos tratando aqui em todas as perguntas. Uma vez entrevistei uma
professora de Ensino Religioso que afirmava que a disciplina não era
proselitista e não discriminava e que, na mesma resposta, comemorava o fato de
ter tido no ano anterior 8 alunos ogans que se converteram ao cristianismo
(ogan é um cargo masculino cuja responsabilidade são muitas, entre elas, tocar
os atabaques nos rituais). A escola, que é o lugar dos diferentes entre si por
natureza, deveria ser o lugar mais preparado para não só lidar, mas também para
aprender profundamente com essas diferenças. Infelizmente não é. Por isso,
muitas crianças e jovens sofrem porque são inferiorizados e inferiorizadas.
Aprendiz: Que tipo de aprendizados podem sair dos terreiros? Como
eles podem contribuir para uma educação antirracista e focada nos direitos
humanos?
Stela: Os terreiros de candomblé são espaços de
circulação de imensos conhecimentos. Crianças, jovens e adultos cultuam seus
ancestrais e, se não podemos dizer que o Candomblé é uma religião africana
porque é brasileira, podemos dizer que o culto aos ancestrais é comum em toda
África. Os negros e negras escravizados para o Brasil chegaram aqui com seus
ancestrais e nos ensinaram a amá-los a cultuá-los. Para poder fazer isso,
criamos o candomblé que, nos terreiros, foi mantido e ressignificado. As
línguas dos povos africanos que aqui chegaram é mantida nos terreiros pela
oralidade, e isso se aprende todos os dias, há séculos, em cada casa de axé.
História, geografia, biologia, ecologia, filosofia, literatura. Um conjunto de
conhecimentos poderosos passados de geração em geração e do qual crianças e
jovens se orgulham, mas que, nas escolas, são obrigados a sentirem vergonha
daquilo que os anima e os faz viver. A educação nos terreiros não é racista,
não discrimina as diversas orientações sexuais, as famílias que se organizam e
se formam a partir dessas diferentes orientações sexuais. Acredito que, por ser assim, a educação nos
terreiros pode ensinar o antirracismo e o humanismo do qual precisamos todos os
dias.
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