Bonecas Abayomi: símbolo de resistência, tradição e
poder feminino
Para acalentar seus filhos durante as terríveis viagens a bordo dos
tumbeiros – navio de pequeno porte que realizava o transporte de escravos entre
África e Brasil – as mães africanas rasgavam retalhos de suas saias e a partir
deles criavam pequenas bonecas, feitas de tranças ou nós, que serviam como
amuleto de proteção. As bonecas, símbolo de resistência, ficaram conhecidas
como Abayomi, termo que significa ‘Encontro precioso’, em Iorubá, uma das
maiores etnias do continente africano cuja população habita parte da Nigéria,
Benin, Togo e Costa do Marfim.
Por Kauê
Vieira, do Afreaka
Sem costura alguma (apenas nós ou tranças), as bonecas não possuem
demarcação de olho, nariz nem boca, isso para favorecer o reconhecimento das
múltiplas etnias africanas. Inspirado pela tradição dessa arte histórica, a
artesã e arte-educadora Cláudia Muller desenvolveu um trabalho único, e, com o
objetivo de evidenciar a memória e identidade popular do povo brasileiro,
valorizando a diversidade cultural que reina na terra brasilis, criou o projeto
Matintah Pereira. A iniciativa produz versões próprias das Abayomi e promove
oficinas tanto para ensinar o processo de criação quanto para discutir a
importância histórica e social entorno das bonecas.
Além de
produzir as Abayomi, Cláudia também promove oficinas educativas. (Foto –
Divulgação)
“Tenho como objetivo ofertar às pessoas e instituições a possibilidade
de criar algo novo, a partir de ações comunitárias que além de ensinar um
ofício podem informar um pouco mais sobre a cultura afro-brasileira,” explica
em entrevista ao Afreaka. Ao longo de sua trajetória Cláudia sempre
se mostrou preocupada em evidenciar as tradições que compõem o universo do
negro brasileiro e também das lendas que permeiam o imaginário popular
nacional. Tais intenções podem ser percebidas já no nome de sua empresa,
Matintah Pereira, que como a artista pontua, é uma lenda oriunda da floresta
Amazônica.
“Contam os ribeirinhos que a Matintah é uma feiticeira anciã. Seus
trajes são negros retalhos esfarrapados, que também adornam sua cabeça,
cobrindo seus longos cabelos brancos. Dizem que ela é sábia conhecedora de
todas as floras medicinais, e que as manipula divinamente”, explica a artista
baseada atualmente em São Vicente, cidade do litoral sul de São Paulo. A
produção de Cláudia Muller é integralmente sustentável. Para a confecção, ela
faz uso de elementos de origem 100% natural, como tecidos de fibra de algodão,
corantes naturais à base de pigmentos extraídos de cascas, folhas, flores e
sementes, além de essências e óleos naturais da Amazônia.
“No início
do projeto, trabalhando na confecção das bonecas Abayomi, senti a necessidade
de explorar outros recursos para encontrar um diferencial do produto. Pesquisei
em livros e na mídia eletrônica a história da boneca de pano, sua origem e como
ela é conhecida em diversas culturas. Com isso, percebi que não há como
diferenciá-las, pois todas têm o mesmo propósito, que é acalentar a quem se
presenteia. Por esse motivo, passei a vincular sua modelagem e estrutura de
acordo com diversas propostas ligadas ao desenvolvimento social e cultural,” pontua.
Com educação correndo nas veias, Muller não demorou muito para pensar
oficinas visando passar para os pequenos tudo que envolve este trabalho
artesanal. Com aproximadamente uma hora de duração, as aulas promovem um
casamento entre criação e tradição. Ou seja, ao mesmo tempo que ensina os
participantes a produzir pelo menos uma peça, Cláudia não deixa de lado a
história que envolve as Abayomi, sempre preparando uma trilha sonora especial
para os cursos, composta por ritmos e sonoridade que remetem a manifestações
culturais diversas.
Lena
Martins, Movimento Negro e o começo de tudo
Cláudia Muller também se inspirou no trabalho da pioneira quando o
assunto é Abayomi, Waldilena Martins, ou Lena Martins para os mais chegados.
Educadora popular e militante do Movimento das Mulheres, ela liderou a
confecção das bonecas no Brasil no final dos anos 1980, ao mesmo tempo em que o
Movimento Negro organizava uma marcha para lembrar os 100 anos da abolição. Em
um cenário em que a questão ecológica estava se popularizando, o objetivo de
Lena era fazer da arte popular instrumento de conscientização e sociabilização.
Não demorou para que o trabalho fizesse sucesso e chamasse a atenção de
mulheres espalhadas pelos quatro cantos do país. A aceitação foi tanta que em
1988 foi criada no Rio de Janeiro a Cooperativa Abayomi, plataforma fundamental
para o fortalecimento da autoestima e reconhecimento da identidade
afro-brasileira.
Por meio de um trabalho social e humanitário, a Cooperativa Abayomi está
em constante diálogo com os movimentos negros, estudantil, sindical e
religioso. O projeto faz parte da rede nacional contra a violência à mulher e
da rede de mulheres negras latino-caribenhas. Integram o time da Cooperativa
Abayomi mulheres educadoras, psicólogas, terapeutas, que juntas organizaram um
grupo de trabalho baseado na conscientização e socialização do indivíduo.
As Abayomi não possuem demarcação de olho, nariz nem boca, isso
para favorecer o reconhecimento das múltiplas etnias africanas. (Foto – Divulgação)
A partir de
todos estes elementos é possível ter uma dimensão da importância das bonecas
Abayomi para história do Brasil e sua relação com o continente africano. Além
de serem encantadoras, elas se colocam como elemento de afirmação das raízes da
cultura brasileira e também do poder e determinação das mulheres negras.
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