E mataram um
menino Kaingang...
2 de Janeiro de 2016, por Elaine
Tavares
Artesanato Kaigang - Foto: professora
Maria Ester
O primeiro originário dessas terras a
perceber que os homens brancos e barbudos que chegavam pelo mar, naquele
distante 1492, não eram "flor que se cheirasse" foi Hatuey, um
jovem cacique da etnia Taíno, que vivia onde hoje está a República Dominicana,
lugar onde desembarcou o grupo de Cristóvão Colombo. Bastaram alguns encontros
para que ele percebesse que a cobiça e a violência eram tudo o que eles
traziam. Foi então que decidiu dar combate aos espanhóis, mesmo em desvantagem
no quesito armas. Percebeu aí que sozinho não poderia vencer e decidiu ir
remando até a ilha próxima, onde hoje fica Cuba, para avisar aos demais povos
da região sobre as atrocidades que o grupo estava cometendo e preparar a
resistência. Junto a um baú com ouro e joias, ele falou aos parentes:
"Este é o Deus que os espanhóis adoram. Por isso eles lutam e
matam, por isso eles nos perseguem e por isso é que temos de atirá-los ao mar.
Nos dizem, esses tiranos, que adoram um deus de paz e igualdade, mas usurpam
nossas terras e nos fazem de escravos. Eles falam de uma alma imortal e de
recompensas e castigos eternos, mas roubam nossos pertences, seduzem nossas
mulheres, violam nossas filhas. Incapazes de nos igualar em valor, esses
covardes se cobrem com ferro que nossas armas não podem romper".
Hatuey liderou muitas batalhas, mas acabou sendo capturado. Sofreu
horríveis torturas foi condenado a morrer na fogueira. Contam que um padre, de
nome Olmedo, ainda tentou convertê-lo na hora final. E Hatuey encontrou forças
para perguntar:
- Os espanhóis também vão para o céu dos cristãos?
- Sim, claro - disse Olmedo.
- Então eu não quero o céu. Quero o inferno. Porque lá não estarão e lá
não verei tão cruel gente.
Nesse final do ano de 2015, um pequeno garoto da etnia Kaingang encontrou com Hatuey em alguma terra sem males, bem longe da presença de gente tão cruel. O menino indígena, de nome Vitor Pinto, e com apenas dois anos de idade, foi degolado no colo da mãe, enquanto mamava. Um homem acercou-se, fez um carinho no rosto de Vitor e quando ele ergue os olhinhos para ver quem lhe afagava, recebeu o golpe fata. Um faca, ou um estilete, ainda não se sabe, lhe rasgou a garganta. A mãe, em choque, correu em busca de ajuda enquanto o homem saiu tranquilo para longe dali.
Nesse final do ano de 2015, um pequeno garoto da etnia Kaingang encontrou com Hatuey em alguma terra sem males, bem longe da presença de gente tão cruel. O menino indígena, de nome Vitor Pinto, e com apenas dois anos de idade, foi degolado no colo da mãe, enquanto mamava. Um homem acercou-se, fez um carinho no rosto de Vitor e quando ele ergue os olhinhos para ver quem lhe afagava, recebeu o golpe fata. Um faca, ou um estilete, ainda não se sabe, lhe rasgou a garganta. A mãe, em choque, correu em busca de ajuda enquanto o homem saiu tranquilo para longe dali.
Na temporada de férias, é bastante comum que famílias indígenas se movam
até o litoral para melhor vender seus artesanatos. E foi o que fez a família de
Vítor, saindo de Chapecó, no oeste de Santa Catarina, indo para Imbituba, no
litoral. Lá, obviamente sem condições de pagar uma hospedagem, eles tiveram de
improvisar e encontrar algum lugar razoavelmente seguro para dormir. O melhor
espaço foi o da rodoviária, onde havia movimento e, por isso mesmo, segurança.
Jamais poderiam supor que alguém, de maneira tão deliberada, pudesse fazer o
que foi feito.
Três dias depois do assassinato foram divulgadas as imagens capturadas
por algum dessas câmeras de rua e nelas se vê o rapaz se aproximando, normal,
como se fosse conversar. Foi tudo muito rápido. A mulher estava sentada no
chão, com o filho no colo. Ele chegou, abaixou-se, moveu a mão, primeiro no
carinho, depois no golpe, e saiu. Tudo depois é perplexidade e dor.
Um garotinho indígena degolado enquanto se alimentava. Uma cena de
arrepiar. A mesma velha cena de mais de 500 anos, repetida e repetida, à
exaustão. Desde a chegada dos espanhóis e portugueses às terras de Abya Yala,
mais de 40 milhões de indígenas foram exterminados. Chamados primeiro de não
humanos, depois de seres de segunda classe, infiéis, inúteis. Não é, portanto,
sem razão, que alguém se ache no direito de fazer o que fez esse rapaz em
Imbituba. Ato parecido foi feito em Brasília contra Galdino Pataxó, quando
alguns rapazes ricos o queimaram enquanto dormia num banco em um abrigo de
ônibus.
Galdino
É que ao longo de todos esses séculos foi sendo construída uma imagem
negativa do indígena, justamente para que pudesse ser justificada a invasão e o
roubo de suas terras e riquezas. Os índios são vistos como um atrapalho, uma
lembrança desconfortável do massacre. Por isso que o melhor acaba sendo
confiná-los em alguma "reserva" longe dos olhos das gentes. Mas, se
eles decidem sair e dividir a vida no mundo branco, aí a coisa fica feia.
Assim que cada pessoa que siga disseminando essa ideia inventada de que
índio é preguiçoso, é feio, é sujo, é ruim, é também cúmplice do assassinato de
Vitor. Cada criatura que repete esses absurdos pelas redes sociais, nos
encontros de família, na escola, nos bares e nas igrejas, armou a mão que
degolou Vítor. E é responsável pela morte não só desse garotinho, mas de
centenas de outros indígenas que tombam pelas mãos assassinas do latifúndio, da
jagunçagem, do ódio. Esse mesmo ódio que escorre pela redes sociais contra o
índio, o negro, as mulheres, os gays.
No mundo capitalista, no qual tudo vira mercadoria, não há espaço para o
indígena. E não é só porque ele é uma presença incômoda, lembrança indelével do
primeiro crime - a invasão. Mas porque ele é também a recusa histórica desse
sistema. Ele não faz da terra uma mercadoria, ele não explora os parentes em
fábricas de coisas, nem inventa produtos inúteis para vender aos incautos.
O indígena pensa o território como espaço de vida e de espiritualidade.
Reproduz suas cerâmicas, seus cestos, colares e bichinhos como resistência
cultural e como única possibilidade de sobreviver no mundo que lhe foi imposto.
E, se ocupa as ruas, as marquises e as rodoviárias é porque não têm outra
escolha.
Então é assim, em Santa Catarina, nesse dia 30 de dezembro, um jovem se
deu o direito de degolar um menino Kaingang. Desde há anos a brava cacica dos
Guarani do Morros dos Cavalos vem recebendo ameaças de morte por defender sua
terra e sua gente, bem como os povos Xokleng e Kaingang vivem sendo
escorraçados de outras praças e outras rodoviárias por autoridades competentes.
Isso é coisa diária, sistemática, como também é sistemático o ataque dos meios
de comunicação contra os povos originários. Essa máquina ideológica do
ódio e da opressão.
Agora, à família do menino Vítor resta a luta pela justiça. Um suspeito
já foi preso e fala-se em "distúrbios psicológicos". Não se tem ainda
a informação segura de quem é o assassino e o que o motivou. Mas, ainda que
seja alguém "perturbado", isso não tira a responsabilidade daqueles
que diuturnamente destilam ódio e preconceito contra os povos
originários.
O "mundo maravilhoso" da mercadoria insiste que não há lugar
para o indígena no seu espaço. Mas, o que se vê é o movimento indígena
brasileiro e latino-americano crescer a avançar na luta pelos seus direitos e
pelos seu território. Isso não vai parar. Caem hoje os mártires, como naquele
longínquo 1492 caiu Hatuey. Mas os que ficam não desistem, como não desistiram
os Taínos, os Arawakes e todos os que caminhavam com o valente cacique. O
pequeno Vítor, que sequer teve tempo de perceber que estava perdendo a vida,
lá, na terra dos espíritos, será embalado por outros colos: Guyunusa,
Guaicaipuru, Mani, Sepé. Por aqui, vamos garantir a justiça. A grande
marcha continua.
Nenhum comentário:
Postar um comentário