Estudar
com a classe média,
jogar
bola com a periferia.
Por Stéphanie
Paes
Algumas
pessoas me chamam de extremista. Muitas não entendem de onde vem minha vontade
de lutar contra injustiças. Algumas acham que não faz sentido eu estar tão
revoltada. A verdade é que eu estou revoltada há muito tempo.
Fui
criada na periferia de Curitiba. Apesar dos incontáveis esforços que meus pais
realizaram para me manter longe de casa (e da rua) tanto quanto fosse possível,
eu não fiquei imune ao que acontecia ao meu redor. Eu sabia que a vizinha da casa
do lado tinha fugido do ex-marido porque ele vivia batendo nela, eu sabia que
aquele piá que tinha crescido jogando bola comigo na rua já estava usando
drogas, eu sabia que a filha daquela outra conhecida estava grávida e o “pai”
da criança tinha sumido. Coisas cotidianas, você não precisa crescer no CIC pra
saber disso. Mas eu também sabia que quando alguém estourava fogos significava
que a droga tinha chegado, eu sabia que nenhum dos meus amigos ficava muito
tempo na rua depois que a polícia aparecia, eu inclusive percebi que a polícia
estava ali quase que o tempo todo, menos quando alguém era assassinado, menos
quando roubaram a minha casa. Para conhecer isso, você tem sim que subir o
morro (ou atravessar o Contorno Sul, a pé, sem passarela).
Como eu já
expliquei em outro texto, faço parte da exceção negra de origem periférica: eu
consegui, na segunda tentativa, sem cursinho específico, uma vaga no Colégio
Militar de Curitiba. Lá estava eu, com 11 anos de idade, quebrando a regra
imposta pelo racismo institucional e conquistando um espaço que não foi feito
para mim. Para quem não sabe, a concorrência para entrar em Colégios Militares
é devastadora, principalmente quando levada em conta a idade dos concorrentes.
No meu ano de aprovação, a concorrência era maior do que quando prestei
vestibular para Direito na UFPR. Não existem cotas. Juntem essas informações e
criem o espaço elitista das vagas reservadas a filhos de civis (até hoje eu não
entendi como funciona o acesso a vagas para filhos de militares então vou me
ater a comentar sobre o que eu sei).
O recorte
racial para mim não foi tão impactante: eu sou curitibana. Mas o abismo social
eu senti já no começo. Eu era uma criança, eu não estava pronta. Eu lembro que
meu pai foi na primeira reunião com o Comandante e voltou falando “Precisamos
comprar um computador, o Comandante disse que não dá pra estudar aqui sem
computador” e alguns meses depois eu tinha computador em casa. Internet discada
por muitos anos, mas eu tinha como fazer pesquisas e digitar meus
trabalhos.
Eu não
lembro quando foi que eu contei, mas eu tenho certeza que foi na inocência e
que, na época, se eu soubesse as consequências que essa informação traria, eu
teria guardado para mim. O fato é que em algum momento ficaram sabendo que eu
era do CIC, e até então eu não tinha consciência do que isso significava para
os curitibanos, até eu ver a cara de susto que as pessoas faziam quando tomavam
conhecimento. Até então eu não sabia que também ia ser tratada de forma
diferente por isso (racismo eu já conhecia e já estava esperando. Sim, com 11
anos), eu não fazia ideia de que pelos próximos anos eu teria que aguentar
“piadas” agravadas por esse fato, praticamente todo dia.
Como eu
era criança, engoli mais do que eu era capaz a fim de me adaptar ao ambiente.
Muita gente achava que eu explodia por pouco, mas a verdade é que quando eu
mostrava que tinha chegado ao meu limite, eu já tinha perdido ele a muito
tempo. Muitos dos meus colegas não fazem ideia de quanto eu aguentei calada
para não perder amigos, para não ser a chata do grupo, para mentir pra mim
mesma e me fazer acreditar que aquilo era normal, que eu tinha que aguentar.
Eu lembro
de estar andando na vizinhança da casa de uma amiga, uma viatura passar, e eu
tentar entender porque ninguém começou a voltar pra casa, porque ninguém
ficou com medo, porque a gente ainda estava dando risada, se tinha policial se
aproximando? As diferenças gritantes que eu iria começar a observar me
acompanharam por todos esses anos.
Foram
anos vendo supostos amigos fingindo que tinham perdido a carteira e pedindo pra
revistar minha bolsa, foram anos ouvindo comentários maldosos sobre o
genocídio da população negra e periférica, foram anos sabendo que toda vez que
uma viatura policial passasse, alguém ia gritar pra eu me esconder.
Me
recordo de uma tarde, durante a final de um campeonato de futebol que estava
sendo disputada com um colégio público e periférico, estar na torcida,
gritando, aproveitando o momento para torcer pelo meu colégio, quando alguém
começou a gritar “VOLTA PRA FAVELA!” e, quando eu me dei conta, a arquibancada
inteira estava gritando para os torcedores do outro colégio, enquanto eu estava
sozinha lá na frente, balançando os braços e pedindo pra pararem. Eu fazia
questão de me posicionar como negra e periférica, todos os meus amigos sabiam
disso, por que eles estavam gritando uma ofensa tão absurda? Meu lugar não era
aquele, e mais uma vez, o grito da classe média foi eficaz pra me recordar
disso.
Mais um
dia de ofensas racistas camufladas de piada na sala, eu disse “respeitem a
população negra, sem ela o Brasil não seria metade do que é hoje” e um dos
racistas responde “tem razão, ele seria desenvolvido”.
Um
professor muito querido por todos, que tinha táticas parecidas com os de
cursinho pré-vestibular estava dando aula. Um dos bordões dele para nos fazer
lembrar das propriedades dos logaritmos era falar “dá um tapa na nega”. Alguns
colegas se levantavam e me davam um tapa.
Aula de
sociologia, professor falando sobre pobrezas extremas, colegas gritando “CIC”
no meio das explicações.
Uma
menina me irritando por semanas, para me tirar do sério ela apelou para racismo
“neguinha fedida!”. Meti a mão na cara dela e só não foi pior porque um
professore interveio. Eu estava quase sendo expulsa por comportamento, mas como
o caso foi de racismo praticamente passaram a mão na minha cabeça, e eu acabei
não levando o preconceito da filha de um oficial para as autoridades.
Aula
sobre período escravocrata, colegas dizendo “Téfi, você lembra disso???”.
Passei o dia todo ouvindo cantarem Xica da Silva para mim.
Um
namorado me conta “Antes de te conhecer a gente costumava dizer que você usa pó
de feijão no lugar de pó de arroz”.
Entrando
na sala de aula, colega se esconde atrás do outro e grita “Ai socorro a Téfi
vai me assaltar”.
Eu
acredito que vivenciar os extremos das duas realidades foi importante de certa
forma, acredito que eu talvez não estivesse no lugar de militância no qual me
encontro hoje se não tivesse passado por situações onde os extremos opostos se
manifestavam. Mas lembrem-se, eu tinha 11 anos quando isso começou. Eu perdi a
conta de quantas vezes eu engoli meu orgulho, minha raiva e até o meu choro.
Muitos dos meus amigos mais próximos da época não fazem ideia de que eu me
recordo desses episódios e que eles me causam dor até hoje.
A
importância de expor casos tão pessoais e que me causam profunda dor:
1) Não existe fim do racismo
com ascensão social ou conquista de espaços até então reservados à população
branca.
Ninguém vai te tratar como
branco se você conseguir vaga em um colégio disputado, ninguém vai te tratar
como branco se você for no shopping pela primeira vez com suas amigas brancas
de classe média, nem os seus amigos brancos de classe média vão te tratar como
branco. Porque raça não some com status social, e as relações de poder não vão
te possibilitar exigir tratamento igual se você for negro. E, principalmente,
quando você ocupa um espaço que historicamente não é seu, as pessoas vão fazer
de tudo (como fizeram comigo) pra te lembrar de que aquele não é o seu lugar.
2) Ignorar o racismo não faz
com que ele seja menos doloroso. Muito menos com que ele desapareça.
Aos amantes do discurso
Morgan Freeman eu posso dizer com propriedade: todas as vezes em que eu fingi
que não estava sendo vítima de racismo, eu sofri em dobro. Sofri por saber que
estava sendo discriminada e mesmo assim me obrigar a ficar quieta, sofri por
ver pessoas que eu considerava como irmãos me inferiorizando pela minha raça,
sofri porque eu sabia que era inteligente o suficiente para calar a boca deles,
e mesmo assim, guardei minha opinião para mim.
3) O combate ao racismo nas
escolas é de extrema importância, mas não está sendo realizado.
A escola, como instituição
fundamental na formação do caráter do indivíduo (inclusive os Colégios
Militares, que se orgulham muito de ensinar a moral e os bons costumes)
deve exercer seu papel no combate à discriminação racial e de origem social.
Não apenas com a implementação da Lei 10.639, mas também com capacitação dos
profissionais, para que diante de casos como os que eu citei, haja atividades
no sentido de combater efetivamente a ideologia racista tão presente entre a
sociedade brasileira.
4) Estabelecer cotas para
alunos negros e de escola pública é só o primeiro passo para resolver o
problema.
Não adianta apenas garantir
vaga para esses estudantes se o ambiente no qual eles terão que estudar é
tóxico e irá apresentar casos de violência psicológica com tanta frequência.
Apenas a implementação de cotas não é suficiente, é necessário um trabalho
pesado para garantir que esses estudantes darão conta de continuar na
instituição, desconstruir a naturalização do racismo e do preconceito de
classe, garantir condições materiais para que o acesso à Internet, por exemplo,
não seja mais uma forma de exclusão social.
5) A periferia me ensinou
mais do que o colégio.
Em partes porque quando
estava em sala de aula muitas vezes eu tinha que lidar com essas situações, mas
eu posso garantir que letras de Rap me ensinaram mais sobre as consequências da
divisão social do trabalho do que qualquer aula sobre teoria marxista. Presenciar
a violência policial me fez aprender qual a origem e a função dessa instituição
sem precisar pesquisar no computador que meu pai comprou. E jogar bola com
o pé descalço na rua me fez muito mais resistente do que treinos de atletismo
em uma pista com instrutor. É irônico, quando eu olho pra trás, perceber que a
cultura periférica e o local onde eu morava eram motivo de riso para aquelas
pessoas. Qualquer morador da periferia sabe muito mais da vida do que meus
colegas que hoje se encontram em Universidades Federais, ou em algum país da
Europa recebendo bolsa do Ciência Sem Fronteiras.
6) Discriminação nunca é
inofensiva.
Talvez levem alguns anos
para as vítimas se manifestarem, como eu fiz, algumas nunca terão a coragem de
abrir a boca e afrontar seus agressores, sejam eles conscientes da violência
que lhe estão impondo ou não. Sempre restam sequelas, e as sequelas não
estão nos olhos de quem vê.
7) Se considerar amigo de
uma pessoa negra não te torna imune de ser racista.
Dispensa explicações.
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