03 novembro 2016

Estudar com a classe média,
jogar bola com a periferia.
Por Stéphanie Paes

Algumas pessoas me chamam de extremista. Muitas não entendem de onde vem minha vontade de lutar contra injustiças. Algumas acham que não faz sentido eu estar tão revoltada. A verdade é que eu estou revoltada há  muito tempo.
Fui criada na periferia de Curitiba. Apesar dos incontáveis esforços que meus pais realizaram para me manter longe de casa (e da rua) tanto quanto fosse possível, eu não fiquei imune ao que acontecia ao meu redor. Eu sabia que a vizinha da casa do lado tinha fugido do ex-marido porque ele vivia batendo nela, eu sabia que aquele piá que tinha crescido jogando bola comigo na rua já estava usando drogas, eu sabia que a filha daquela outra conhecida estava grávida e o “pai” da criança tinha sumido. Coisas cotidianas, você não precisa crescer no CIC pra saber disso. Mas eu também sabia que quando alguém estourava fogos significava que a droga tinha chegado, eu sabia que nenhum dos meus amigos ficava muito tempo na rua depois que a polícia aparecia, eu inclusive percebi que a polícia estava ali quase que o tempo todo, menos quando alguém era assassinado, menos quando roubaram a minha casa. Para conhecer isso, você tem sim que subir o morro (ou atravessar o Contorno Sul, a pé, sem passarela).
Como eu já expliquei em outro texto, faço parte da exceção negra de origem periférica: eu consegui, na segunda tentativa, sem cursinho específico, uma vaga no Colégio Militar de Curitiba. Lá estava eu, com 11 anos de idade, quebrando a regra imposta pelo racismo institucional e conquistando um espaço que não foi feito para mim. Para quem não sabe, a concorrência para entrar em Colégios Militares é devastadora, principalmente quando levada em conta a idade dos concorrentes. No meu ano de aprovação, a concorrência era maior do que quando prestei vestibular para Direito na UFPR. Não existem cotas. Juntem essas informações e criem o espaço elitista das vagas reservadas a filhos de civis (até hoje eu não entendi como funciona o acesso a vagas para filhos de militares então vou me ater a comentar sobre o que eu sei).
O recorte racial para mim não foi tão impactante: eu sou curitibana. Mas o abismo social eu senti já no começo. Eu era uma criança, eu não estava pronta. Eu lembro que meu pai foi na primeira reunião com o Comandante e voltou falando “Precisamos comprar um computador, o Comandante disse que não dá pra estudar aqui sem computador” e alguns meses depois eu tinha computador em casa. Internet discada por muitos anos, mas eu tinha como fazer pesquisas e digitar meus trabalhos.
Eu não lembro quando foi que eu contei, mas eu tenho certeza que foi na inocência e que, na época, se eu soubesse as consequências que essa informação traria, eu teria guardado para mim. O fato é que em algum momento ficaram sabendo que eu era do CIC, e até então eu não tinha consciência do que isso significava para os curitibanos, até eu ver a cara de susto que as pessoas faziam quando tomavam conhecimento. Até então eu não sabia que também ia ser tratada de forma diferente por isso (racismo eu já conhecia e já estava esperando. Sim, com 11 anos), eu não fazia ideia de que pelos próximos anos eu teria que aguentar “piadas” agravadas por esse fato, praticamente todo dia.
Como eu era criança, engoli mais do que eu era capaz a fim de me adaptar ao ambiente. Muita gente achava que eu explodia por pouco, mas a verdade é que quando eu mostrava que tinha chegado ao meu limite, eu já tinha perdido ele a muito tempo. Muitos dos meus colegas não fazem ideia de quanto eu aguentei calada para não perder amigos, para não ser a chata do grupo, para mentir pra mim mesma e me fazer acreditar que aquilo era normal, que eu tinha que aguentar.
           Eu lembro de estar andando na vizinhança da casa de uma amiga, uma viatura passar, e eu tentar entender porque ninguém começou a voltar pra casa, porque ninguém ficou com medo, porque a gente ainda estava dando risada, se tinha policial se aproximando? As diferenças gritantes que eu iria começar a observar me acompanharam por todos esses anos.
Foram anos vendo supostos amigos fingindo que tinham perdido a carteira e pedindo pra revistar minha bolsa, foram anos ouvindo comentários maldosos sobre o genocídio da população negra e periférica, foram anos sabendo que toda vez que uma viatura policial passasse, alguém ia gritar pra eu me esconder.
Me recordo de uma tarde, durante a final de um campeonato de futebol que estava sendo disputada com um colégio público e periférico, estar na torcida, gritando, aproveitando o momento para torcer pelo meu colégio, quando alguém começou a gritar “VOLTA PRA FAVELA!” e, quando eu me dei conta, a arquibancada inteira estava gritando para os torcedores do outro colégio, enquanto eu estava sozinha lá na frente, balançando os braços e pedindo pra pararem. Eu fazia questão de me posicionar como negra e periférica, todos os meus amigos sabiam disso, por que eles estavam gritando uma ofensa tão absurda? Meu lugar não era aquele, e mais uma vez, o grito da classe média foi eficaz pra me recordar disso.
Mais um dia de ofensas racistas camufladas de piada na sala, eu disse “respeitem a população negra, sem ela o Brasil não seria metade do que é hoje” e um dos racistas responde “tem razão, ele seria desenvolvido”.
Um professor muito querido por todos, que tinha táticas parecidas com os de cursinho pré-vestibular estava dando aula. Um dos bordões dele para nos fazer lembrar das propriedades dos logaritmos era falar “dá um tapa na nega”. Alguns colegas se levantavam e me davam um tapa.
Aula de sociologia, professor falando sobre pobrezas extremas, colegas gritando “CIC” no meio das explicações.
Uma menina me irritando por semanas, para me tirar do sério ela apelou para racismo “neguinha fedida!”. Meti a mão na cara dela e só não foi pior porque um professore interveio. Eu estava quase sendo expulsa por comportamento, mas como o caso foi de racismo praticamente passaram a mão na minha cabeça, e eu acabei não levando o preconceito da filha de um oficial para as autoridades.
Aula sobre período escravocrata, colegas dizendo “Téfi, você lembra disso???”. Passei o dia todo ouvindo cantarem Xica da Silva para mim.
Um namorado me conta “Antes de te conhecer a gente costumava dizer que você usa pó de feijão no lugar de pó de arroz”.
Entrando na sala de aula, colega se esconde atrás do outro e grita “Ai socorro a Téfi vai me assaltar”.
Eu acredito que vivenciar os extremos das duas realidades foi importante de certa forma, acredito que eu talvez não estivesse no lugar de militância no qual me encontro hoje se não tivesse passado por situações onde os extremos opostos se manifestavam. Mas lembrem-se, eu tinha 11 anos quando isso começou. Eu perdi a conta de quantas vezes eu engoli meu orgulho, minha raiva e até o meu choro. Muitos dos meus amigos mais próximos da época não fazem ideia de que eu me recordo desses episódios e que eles me causam dor até hoje.
A importância de expor casos tão pessoais e que me causam profunda dor:
1) Não existe fim do racismo com ascensão social ou conquista de espaços até então reservados à população branca.
 Ninguém vai te tratar como branco se você conseguir vaga em um colégio disputado, ninguém vai te tratar como branco se você for no shopping pela primeira vez com suas amigas brancas de classe média, nem os seus amigos brancos de classe média vão te tratar como branco. Porque raça não some com status social, e as relações de poder não vão te possibilitar exigir tratamento igual se você for negro. E, principalmente, quando você ocupa um espaço que historicamente não é seu, as pessoas vão fazer de tudo (como fizeram comigo) pra te lembrar de que aquele não é o seu lugar.
2) Ignorar o racismo não faz com que ele seja menos doloroso. Muito menos com que ele desapareça.
Aos amantes do discurso Morgan Freeman eu posso dizer com propriedade: todas as vezes em que eu fingi que não estava sendo vítima de racismo, eu sofri em dobro. Sofri por saber que estava sendo discriminada e mesmo assim me obrigar a ficar quieta, sofri por ver pessoas que eu considerava como irmãos me inferiorizando pela minha raça, sofri porque eu sabia que era inteligente o suficiente para calar a boca deles, e mesmo assim, guardei minha opinião para mim.
3) O combate ao racismo nas escolas é de extrema importância, mas não está sendo realizado.
A escola, como instituição fundamental na formação do caráter do indivíduo (inclusive os Colégios Militares, que se orgulham muito de ensinar a moral e os bons costumes) deve exercer seu papel no combate à discriminação racial e de origem social. Não apenas com a implementação da Lei 10.639, mas também com capacitação dos profissionais, para que diante de casos como os que eu citei, haja atividades no sentido de combater efetivamente a ideologia racista tão presente entre a sociedade brasileira.
4) Estabelecer cotas para alunos negros e de escola pública é só o primeiro passo para resolver o problema.
Não adianta apenas garantir vaga para esses estudantes se o ambiente no qual eles terão que estudar é tóxico e irá apresentar casos de violência psicológica com tanta frequência. Apenas a implementação de cotas não é suficiente, é necessário um trabalho pesado para garantir que esses estudantes darão conta de continuar na instituição, desconstruir a naturalização do racismo e do preconceito de classe, garantir condições materiais para que o acesso à Internet, por exemplo, não seja mais uma forma de exclusão social.
5) A periferia me ensinou mais do que o colégio.
Em partes porque quando estava em sala de aula muitas vezes eu tinha que lidar com essas situações, mas eu posso garantir que letras de Rap me ensinaram mais sobre as consequências da divisão social do trabalho do que qualquer aula sobre teoria marxista. Presenciar a violência policial me fez aprender qual a origem e a função dessa instituição sem precisar pesquisar no computador que meu pai comprou. E jogar bola com o pé descalço na rua me fez muito mais resistente do que treinos de atletismo em uma pista com instrutor. É irônico, quando eu olho pra trás, perceber que a cultura periférica e o local onde eu morava eram motivo de riso para aquelas pessoas. Qualquer morador da periferia sabe muito mais da vida do que meus colegas que hoje se encontram em Universidades Federais, ou em algum país da Europa recebendo bolsa do Ciência Sem Fronteiras.
6) Discriminação nunca é inofensiva.
Talvez levem alguns anos para as vítimas se manifestarem, como eu fiz, algumas nunca terão a coragem de abrir a boca e afrontar seus agressores, sejam eles conscientes da violência que lhe estão impondo ou não.  Sempre restam sequelas, e as sequelas não estão nos olhos de quem vê.
7) Se considerar amigo de uma pessoa negra não te torna imune de ser racista. 
Dispensa explicações.

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