''Professora, como é estudar? Me ensina?''
Por Elika Takimoto
Há quatro anos, tivemos no
CEFET/RJ nossos primeiros alunos cotistas. Para entrar lá, os jovens fazem uma
prova de seleção. Naquele ano, 50% das vagas foram destinadas para alunos
negros, de escolas públicas e com renda baixa.
Lembro-me que levei um susto ao
entrar em sala. Havia negros e alunos extremamente diferentes na forma de se
expressar. Eu simplesmente não sabia como lidar. Pensei em escrever uma carta
para Dilma reclamando. Se esse governo quer colocar cotistas em sala, que ao
menos nos dê uma certa infra-estrutura para recebê-los! Psicólogos, pedagogos,
assistentes sociais… cadê esse time para nos ajudar? Nada? Como assim?
Da mesma forma que sempre fazia
com a minha turma, eu mandava o meu aluno estudar. Dizia que se ele não fizesse
a parte dele, não passaria porque bababá bububú… muitos alunos cotistas não
mexiam o dedo mesmo eu repetindo o discurso: você tem que estudar! Você tem que
estudar!!!
Percebi que muitos não sabiam o
que era “estudar” porque, nunca haviam estudado. Era como eu virar para
qualquer outro na rua que nunca, por exemplo, estudou música e falar: você tem
que treinar piano! Você tem que treinar piano! O cara ia sentar em frente ao
piano e fazer o quê? Não saberia nem por onde começar! Quando percebi isso
entrei em desespero porque o problema era muito maior do que pensava…
O que fazer? Desistir? Deixar que
todos repetissem? Mas seriam muitos! O desespero une os seres humanos que estão
sob o mesmo inferno. Nós, professores, fomos conversando e juntamente com parte
da equipe pedagógica, criando subsídios para esses alunos.
A ficha caiu quando um menino de
boné e cordão prata veio até mim e falou: “Professora, você fala que eu tenho
que estudar. O que seria exatamente isso? Eu não quero perder essa
oportunidade. Me ajuda…”
Esse menino mal sabia pegar no
lápis por falta de hábito…
Tivemos que lidar também com
tensões e preconceitos que existiam entre eles. Por exemplo, alguns alunos que
vieram de escolas particulares com família bem estruturada não entendiam por
quê o colega não fazia o trabalho direito. Inicialmente, houve, em algumas
turmas, segregação. No jogo de xadrez, por exemplo, onde temos peças pretas e
brancas, eles perguntavam quem seriam os cotistas e os não-cotistas…
Sei que criamos aulas de
atendimento… preparamos nossos monitores para atender a esse novo perfil de
aluno. Ensinei a aluno segurar no lápis e organizar o raciocínio para aprender
física e fazer problemas de IME e ITA como fazia em todos os outros anos e
dá-lhe conversas com todos os demais privilegiados para entender que não é
excluindo que incluímos ninguém. Não é fazendo o mal que faremos um bem…
O que nenhum professor do CEFET
admitia era baixar o nível de nossa instituição. Eles, os alunos cotistas,
teriam que alcançar os demais. Foi preciso muita dedicação, hora extra, mais
avaliações para o aluno ter oportunidade de recuperar a nota – dentre outras
coisas maiores como, por exemplo, amor ao próximo e empatia à causa – para que
o equilíbrio, enfim, fosse alcançado.
Foi preciso muito mais trabalho…
Fizemos um forte levantamento
sobre o rendimento desses alunos. Quanta emoção ver as notas deles no segundo
semestre se igualando aos demais colegas que tiveram muito mais oportunidades e
condições para estudar. Quanta emoção… conseguimos, gente, conseguimos… estamos
conseguindo…
Percebi claramente que falta de
base nada tem a ver com capacidade intelectual e me surpreendi muito quando vi
minha cara se esfarelando e a poesia sambando na cara do meu preconceito ou
melhor, do meu desespero – no sentido, aqui, de negar a esperança.
Este ano (como em outros nas
minhas turmas do primeiro ano), minha primeira avaliação foi coletiva e não
individual. Os alunos tinham que fazer um grupo, estudar entre eles e, no dia
da prova, eu faria uma pergunta em que somente um deles, sorteado por mim na
hora, resolveria no quadro a questão por mim colocada. A nota do aluno
escolhido seria a nota de todos os demais componentes daquele grupo. Essa foi
uma forma que encontrei de forçar os alunos privilegiados a me ajudarem a
ajudar os menos privilegiados.
Para um jovem de 15 anos, isso
beirou o absurdo das injustiças. Uma aluna veio falar comigo: “professora, eu
vou ter que convencer o outro a estudar como? Eu tô chamando e ele, quando vem,
nada fala!”
Com muito amor e já mais
experiente e segura, expliquei a ela que estávamos lidando com uma pessoa que
vinha de uma realidade completamente diferente e que a forma de incluí-la não
seria fazendo um chamado comum porque esse ser já tinha sofrido na pele o diabo
da exclusão social e se sentia amedrontado perante os demais. “Você vai ser o
diferencial na vida dele. Dependendo da forma em que se chegue a ele, você pode
despertar um artista, um sábio, um colega pensante ou minar qualquer coisa boa
que possa emergir.” A menina de 15 anos me olhou assustada. Nunca talvez
ninguém havia lhe dado tanta responsabilidade. Continuei: “Sim. Temos que,
acima de tudo, cuidar uns dos outros sempre. Isso se aprende também na escola.”
A prova foi ontem. Sem querer,
escolhi o aluno com maior dificuldade. Ele foi ao quadro e falou com certa
timidez natural, mas com uma segurança que eu mesma não esperava.
Ao final da aula, a aluna veio emocionada falar comigo: “Professora, fiz o que a senhora falou. Chamei o menino de outra forma e com jeitinho fui tirando dele o que ele sabia e mostrando a ele como agir. Estudamos a tarde toda. Você viu como ele falou bem?”.
Ao final da aula, a aluna veio emocionada falar comigo: “Professora, fiz o que a senhora falou. Chamei o menino de outra forma e com jeitinho fui tirando dele o que ele sabia e mostrando a ele como agir. Estudamos a tarde toda. Você viu como ele falou bem?”.
Havia o orgulho e a felicidade em
ter ajudado o próximo e incluir um que, em outra época, seria completamente
jogado às margens da nossa sociedade sendo o que chamamos de “marginal” em sua
essência.
Escrevo isso sob uma emoção ainda
muito forte. Quando vejo a primeira turma de cotistas se formando com louvor
sem nada mais ter do que se envergonhar em termos de conhecimento em relação
aos seus colegas, eu devo agradecer por essa oportunidade de fazer com que eu
fosse uma verdadeira educadora. Devo agradecer pela oportunidade de me fazer
unir e dialogar com os colegas e crescermos todos como um verdadeiro centro de
ensino. Devo agradecer por ter me feito um ser humano infinitamente mais
sensível e melhor.
Reclama da política das cotas
quem nunca sentiu na pele e testemunhou o desabrochar da dignidade de um
cidadão…
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