A Lei da Mordaça. O significado histórico e nosso combate
Maritania Camargo e Evandro Colzani
"Dormia ainda D.
Quixote, quando o cura pediu à sobrinha a chave do quarto em que estavam os
livros ocasionadores do prejuízo; e ela lhe a deu de muito boa vontade. Entraram
todos, e com eles a ama; e acharam mais de cem grossos e grandes volumes, bem
encadernados, e outros pequenos. A ama, assim que deu com os olhos neles, saiu
muito à pressa do aposento, e voltou logo com uma tigela de água-benta e um
hissope, e disse: — Tome Vossa Mercê, senhor licenciado, regue esta casa toda
com água-benta, não ande por aí algum encantador, dos muitos que moram por
estes livros, e nos encante a nós, em troca do que nós lhes queremos fazer a
eles desterrando-os do mundo. Riu-se da simplicidade da ama o licenciado, e
disse para o barbeiro que lhe fosse dando os livros um a um, para ver de
que tratavam, pois alguns poderia haver que não merecessem castigo de fogo. —
Nada, nada — disse a sobrinha; — não se deve perdoar a nenhum; todos
concorreram para o mal. O melhor será atirá-los todos juntos pelas janelas ao
pátio, empilhá-los em meda, e pegar-lhes fogo; e se não, carregaremos com eles
para mais longito da casa, para nos não vir molestar o fumo incomodará. "
O trecho acima faz parte da obra D.
Quixote publicada em 1605. Já nessa época o escritor Cervantes, homem muito à
frente de seu tempo no olhar sobre o mundo, já satirizava a ideia que foi
mantida durante séculos sobre a censura à informação. Mais de quatro
séculos se passaram, mas as classes dominantes continuam querendo queimar
nossos livros e apagar nossa história.
No mês de abril desvendou-se o véu que
circundava as instituições políticas brasileiras. De um lado vimos o Congresso
Nacional podre, com um discurso inflamado, hipócrita, de que representam o
povo, por outro, o aparecimento de projetos de lei que retiram direitos
concretos dos trabalhadores, como é o caso da liberdade de expressão.
Os "representantes do povo",
numa tentativa brutal de calar todas as vozes destoantes desse circo nacional,
tentam limitar a liberdade de expressão nas escolas e, por consequência, nos
sindicatos e no movimento estudantil. Tais ações são sustentadas pela
Organização Não Governamental (ONG) "Escola Sem Partido” (ESP) e levadas
adiante por parlamentares em todos os níveis da federação. Calar as vozes e
apagar a história é o objetivo central de projetos de lei como o 8.242/2016 da
cidade de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, apelidado de Lei da Mordaça. Um
projeto com o mesmo teor foi aprovado em Alagoas. Curioso observar que Alagoas
tem o maior índice de analfabetismo do país e a preocupação dos parlamentares em limitar a liberdade de expressão dos
professores.
Tais medidas não são um raio em céu azul.
Numa rápida consulta à história é possível saber que em momentos onde as
instituições políticas estiveram tão desmoralizadas, como é a atual situação do
Brasil, os rumos da história foram mudados por aqueles que realmente a fazem.
Portanto, a tentativa dessas medidas é de controlar ao máximo o acesso ao
conhecimento. Assim fica mais fácil manipular a história, controlar o povo
trabalhador e a juventude.
A aprovação dessas leis é um retrocesso de
centenas de anos, é a privação ao acesso à história da humanidade, é a
tentativa de condenar toda uma geração. Por isso, é preciso entender o
significado dessas ações e combatê-las.
Um
pouco de história
O sistema educacional brasileiro é o que
restou da educação francesa. Em 1881 e 1882 a Assembleia Nacional francesa
aprovava as leis republicanas que iriam dar fundamento a grande parte dos
sistemas educacionais republicanos pelo mundo. Esse sistema estava fundamentado
em três pilares, a gratuidade, a obrigatoriedade e a laicidade.
Com olhos na tão recente Comuna de Paris
(1871), os parlamentares franceses foram obrigados a garantir que as classes
desprovidas tivessem acesso ao conhecimento. A ideia de que outro mundo era
possível estava latente nos jovens e trabalhadores. Não havia condições
de esconder que o acesso a todos era realizável. Diante disso, a França abre
caminho ao modelo republicano de educação que conhecemos hoje.
O Brasil, de forma muito atrasada, também
registrou esses três pilares na recente democratização do país, na Constituição
de 1988. Também ressaltou, no artigo 206, a “liberdade de aprender, ensinar e
pesquisar” como um dos nossos fundamentos.
No entanto, antes de se solidificar nossa
história já sofreu duros golpes. Nem bem a nova Constituição era aprovada, a
grande burguesia internacional já mirava a educação brasileira no intuito de
torná-la um filé de lucro aos empresários do setor. Assim, o final do século 20
e a primeira década do século 21 foram marcados por um aumento nunca visto do
ensino particular, pelo sucateamento total das escolas públicas, por
achatamento dos salários e pela destruição das condições de trabalho dos
professores de norte a sul. Ou seja, houve a precarização total do público em
benefício do privado.
A
resistência
Tanto os professores como os estudantes
não se deram por vencidos e são hoje uma das maiores e mais combativas forças
do país.
Os professores e os jovens têm uma
história de luta riquíssima. Apenas nas últimas décadas foram ponto fundamental
nas manifestações que pediam eleições diretas, Fora Collor, Piso Nacional do
Magistério, obrigatoriedade do Ensino Médio, entre outras centenas. Em 2015 e
2016 já são muitos os registros. Vimos uma das maiores greves da história no
estado do Paraná, uma vitória exemplar dos estudantes de São Paulo com a
ocupação de escolas e, neste momento, vemos o levante dos professores e da
juventude nas escolas do Rio de Janeiro.
Essa força causa medo nas instituições
estabelecidas. O Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Câmaras de
Vereadores reagem, trazendo à tona a mais cruel de suas faces com a tentativa
de cercear a liberdade de expressão, calar os oprimidos e, acima de tudo,
apagar a história.
Com uma variação linguística para todos os
gostos, o objetivo central dos projetos que tramitam em diversos estados e municípios
é proibir que professores e estudantes tenham acesso à história. Querem apagar
as grandes lutas feitas pela juventude e pelos professores em todo o mundo.
Isso é o que as classes dominantes mais temem.
Os
projetos
Os projetos que tramitam nas Câmaras
Municipais, Assembleias Estaduais e Congresso Nacional têm como base a censura.
Seus textos variam e utilizam frases como: “o professor deve ser
imparcial”, “o professor não pode discutir religião” e “o professor não pode
ter tendência partidária”.
O projeto modelo apresentado pela ESP, no
Artigo 3º explica quais são os deveres do professor:
III - [o professor] não fará
propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a
participar de manifestações, atos públicos e passeatas;
VI
- [o professor] não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores
sejam violados pela ação de estudantes ou terceiros, dentro da sala de aula.
A ESP quer calar o professor em sala, ao
exigir essa “neutralidade”, e quer calar qualquer um que queira se manifestar
no mesmo espaço. Por exemplo, o grêmio estudantil da escola ou sindicato dos
professores.
Afinal, de que forma é possível ensinar
história, literatura, biologia, geografia e mesmo as ciências exatas sem apontar
os erros, os acertos, os absurdos, as diferenças em cada época vivida? O que
esses parlamentares, que possuem partidos e ideologias, querem com esses
projetos? Essa é uma atrocidade e um retrocesso. Deve ser combatida com força,
organização e luta.
Vejamos alguns exemplos do que significa
“imparcialidade” com o conhecimento e o que os professores teriam que evitar
dizer:
·
Que a
ditadura militar no Brasil foi orquestrada pelo imperialismo norte-americano e
matou milhares de jovens e trabalhadores.
·
Que na
Idade Média quem lia e discordava dos algozes era queimado em praça pública
pela Igreja e pela coroa.
·
Que na
Grécia antiga havia outras crenças e outros deuses.
·
Que os
índios habitam o Brasil há milênios e não são grandes proprietários de terras
como algumas 100 famílias de latifundiários do país.
·
Que a
escravidão já foi lei e que o Brasil foi o último país a acabar com essa
barbárie.
·
Que o
Nazismo foi um dos maiores massacres que a humanidade já viu.
·
Que
Darwin existiu.
·
Que o
mapa do continente africano tem linhas retas, pois foi dividido artificialmente
por países que o exploram até hoje.
·
Que a
história da arte e da literatura está intrinsecamente ligada às mudanças
econômicas, políticas e sociais da humanidade.
·
Que a
Igreja obrigou Galileu a negar a teoria de que a Terra não era o centro do
universo.
·
Que os
jovens e trabalhadores têm força para derrubar o Congresso Nacional.
·
Que os
maiores avanços de nossos direitos vêm de grandes revoluções.
·
Que o
direito de escolha sexual e religiosa é privado e não diz respeito aos
governantes.
·
Que os
governos e parlamentos atuais não nos representam e que nós podemos mudar o
sistema.
Talvez,
eles tenham razão, é preciso limitar o conhecimento dos jovens. Do contrário,
os dias dos parlamentares, bem como dos burgueses que os financiam, estão
contados.
O
que é a ONG Escola Sem Partido?
A ESP é a ONG que impulsiona a Lei da
Mordaça no país. Ela primeiramente criou um anteprojeto de lei, em versões para
municípios e estados. Esse anteprojeto foi apresentado nas Assembleias
Legislativas do Rio de Janeiro, Goiás, São Paulo, Espírito Santo, Ceará,
Distrito Federal e Rio Grande do Sul e nas Câmaras de Vereadores de Joinville
(SC), Curitiba (PR), Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP), Toledo (PR), Vitória
da Conquista (BA), Cachoeiro de Itapemirim (ES), Foz do Iguaçu (PR) e Santa
Cruz do Monte Castelo (PR). Sendo que nesta última cidade e no estado de
Alagoas o projeto já foi aprovado.
Em sua página web, a ESP afirma se
inspirar no “trabalho bem sucedido" do No Indoctrination, um site
criado pela americana Luann Wright ao descobrir que o seu filho teria que
escrever artigos sobre o racismo de brancos contra os negros. Wright acreditava
que o professor do seu filho deveria tratar apenas de ensinar ele a escrever e
não se aproveitar de sua posição para tratar de crenças pessoais em sala de
aula. A solução encontrada por Wright foi fundar uma espécie de fórum,
noindoctrination.org, para permitir que denúncias de pessoas que se sentissem
afetadas pelas crenças de seus professores pudessem ser realizadas nesse
espaço.
A ESP vai além. A ONG se apoia na ideia de
que a esquerda se beneficia do seu espaço nas salas de aula para impor suas
ideologias sobre os estudantes que são “audiência cativa” para esses
professores. Para eles, essas ideias ameaçam destruir os “valores” da sociedade
brasileira. O coordenador da ESP, Miguel Nagib, acredita que os professores não
podem ter liberdade de expressão no exercício de sua função e chega ao absurdo
de afirmar que os professores que exprimem suas ideias deveriam ser
considerados criminosos.
Nagib conta com o apoio dos tipos mais
atrasados da política brasileira. Por exemplo, o deputado federal Rogério
Marinho (PSDB-RN), que apresentou o projeto de lei 1.411/2015, propondo "a
criminalização do assédio ideológico”. O PL prevê penas de até um ano de prisão
para professores que recriminarem estudantes por questões ideológicas. Outro
deputado, Izalci Ferreira, também do PSDB, apresentou o PL 867/2015, que foi
apensado ao PL 7.180/2014 e é uma espécie de versão nacional da Lei da Mordaça.
No Rio Grande Sul, o anteprojeto foi apresentado pelo deputado estadual do PP,
Marcel Van Hattem, fundador do Movimento Brasil Livre.
Nagibi, Wright, Marinho, Hattem e Izalci
são tão hipócritas que não se consideram “ideólogos”.
Os livros didáticos também são alvos da
ESP por “espalharem as ideias comunistas” nas escolas, como se tudo fizesse
parte de uma grande conspiração vermelha, que envolve, inclusive, o governo
venezuelano.
Para a ESP, a esquerda é quem mais se
beneficia da suposta “ideologização” imposta pelos professores que se
aproveitam da sua posição para "fazer a cabeça” dos estudantes. Quando, na
verdade, serão as classes dominantes as beneficiadas pelo silêncio do
professor, grêmios e sindicatos em sala. A
Lei da Mordaça não quer evitar uma possível ideologização, ela quer evitar que
a ideologia dominante seja questionada.
A ONG acusa um professor do Paraná, que
fez greve no ano passado, que foi violentamente reprimida pela Polícia Militar
a mando de Beto Richa e, depois, fez uma prova onde manifestava posição
contrária ao governador do PMDB. Porém, não faz uma crítica ao governo Richa,
que atacava a previdência dos professores naquele mesmo ano e que usou a
polícia para calar os mesmos.
No dia 24 de março de 2015, a pedido do
deputado Izalci Ferreira, uma audiência
pública foi realizada pela Comissão de Educação da Câmara dos
Deputados com o tema: Doutrinação Política e Ideológica nas Escolas.
Participaram da audiência: Manuel Palácios
(Secretário de Educação Básica do Ministério da Educação), Celso da Costa
Franches (Associação Nacional dos Centros Universitários - Anaceu), Braulio
Porto De Matos (professor de sociologia do Departamento de Educação da
Universidade de Brasília - UnB), Luiz Lopes Diniz Filho (professor do
Departamento de Geografia da Universidade Federal do Paraná - UFPR), professora
Ana Caroline Campagnolo, Trajano Sousa De Melo (promotor de Justiça de Defesa
do Consumidor, do Ministério Público), Amábile Pácios (presidente da Federação
Nacional das Escolas Particulares - Fenep) e Miguel Nagib (coordenador do
Movimento Escola Sem Partido).
Não é difícil de imaginar o nível desse
debate, que buscou apenas dar visibilidade ao projeto de Nagib. É preciso
entender as ideias que fundamentam esse projeto. Os presentes na audiência
podem servir para ilustrá-las.
A presidente da Fenep, Amábile Pácios,
representa a iniciativa privada e teme que qualquer professor tenha ideias de
esquerda, que se filie ao sindicato etc. O professor de sociologia da UnB,
Bráulio Porto de Matos, é amigo e cita Olavo de Carvalho para dar “peso” a seus
argumentos. A "educadora" Ana Caroline Campagnolo tem seu discurso
exaltado, hoje, por Jair Bolsonaro e Rodrigo Constantino.
Todos eles confirmam que as ideias
marxistas são transmitidas nas salas de aula e precisam ser combatidas. Com
exceção de Manuel Palácios, todos usam o reacionário Olavo de Carvalho para
sustentar seus argumentos e/ou fazem citações do “filósofo”.
Além disso, Luiz Lopes, Bráulio Porto, Ana
Campagnolo e Nagib, escrevem artigos, possuem espaço no Instituto Millenium,
que é bancado pela Gerdau, Globo, Abril, Banco Pactual, Banco BBM, Banco CSFB,
Grupo Ultra, Petropar, Odebrecht, JP Morgan, etc., com um fundo gerido pelo
ex-ministro do governo FHC, Armínio Fraga.
Devemos
combater a Escola Sem Partido
A Escola Sem Partido possuiu uma
ideologia, um partido, ela tem lado. Não quer proteger nossos filhos. Ela é
formada e sustentada pelos elementos mais podres que existem na nossa
sociedade. Seus defensores estão dispostos a calar nossos professores, a
impedir que o estudante tenha acesso ao conhecimento pleno, a qualquer coisa
para evitar que a maioria desperte e lute contra a minoria.
Esse é o centro da questão, a função da
escola é socializar o conhecimento. Proibir leituras, proibir a livre discussão
é retroceder à Idade Média, à inquisição.
Não recuaremos um milímetro. Defendemos
uma escola pública, gratuita e laica, em que professores e estudantes tenham
liberdade de expressão e o direito à divergência. Que em cada lugar onde esses
atrasados tentem cercear nossos direitos estejamos em pé e prontos para
derrotá-los.
Convocamos todos os professores, jovens,
pais a engajarem-se na luta por uma escola livre, onde o conhecimento seja uma
busca permanente, onde nenhuma pessoa será discriminada por sua opção
ideológica, religiosa ou sexual. Onde possamos divergir e aprender uns com os
outros e com a história. Por uma escola onde possamos dizer que este mundo de
opressão e exploração precisa ser transformado, onde o conhecimento não seja
visto como um ato de rebeldia, mas, sim, como um direito de todos.
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